Nem todos sabem, mas além do estúpido "Dia da Mentira" hoje é também o aniversário de um dos eventos que mais teve consequências negativas na curta história deste país: O Golpe Militar de 1964, que cobriu todo o país sobre a sombra da ditadura, levando muitas pessoas aos maiores estágios do sofrimento e à morte. Hoje, 48 anos depois desse triste acontecimento, trago a público a minha singela homenagem, não só aos bravos rebeldes que pereceram combatendo a opressão do Regime Militar, mas também a todos os que lutaram e morreram em prol dos ideais de um Brasil mais justo, com mais igualdade e liberdade em todas as épocas da nossa sangrenta história. Boa leitura.
O jovem militar estava montado em
seu cavalo marrom de raça, vestindo sua melhor farda, com a espada na bainha de
prata presa ao cinto, onde também estava o coldre da pistola. Ele nunca tivera
tanto orgulho de ser um membro do pelotão de Benjamin Constant como naquela
manhã, no dia 15 de novembro de 1889. E foi com um gesto imensamente apreciado
que ele tirou o relógio de ouro do bolso.
O relógio recém-comprado era
simplesmente o instrumento mais belo que possuía. De origem francesa, com todo
o acabamento decorado, uma corrente de prata e ponteiros firmes com movimento
preciso, o Militar sabia que aquele pequeno objeto viraria um símbolo do que se
passava ali.
No Campo de Santana, de onde o
pelotão estava próximo, alguns civis assistiam àquela movimentação sem entender
muito bem a importância do acontecimento. O Marechal Deodoro da Fonseca se
aproximava, também com seus subordinados, e não demorou muito a ser aclamado
pelos presentes, após seu grito magnífico:
- Viva a República!
E o movimento prosseguiu, despedindo
os ministros, instaurando o Governo Provisório e colocando Deodoro da Fonseca
como líder dos Estados Unidos do Brasil. E foi com imenso orgulho na sua participação
naquele evento que o jovem militar do relógio imaginou quantas e quantas vezes
contaria aquele acontecimento aos seus filhos, e, se Deus permitisse, aos seus
netos.
Mas Deus não permitiu.
Alguns anos mais tarde, em 1914,
aquele jovem militar seria morto em uma briga de bar, quando sacou a pistola
contra um homem que criticava a república e foi esfaqueado pelas costas por um
dos amigos de seu adversário. Porém, o relógio de ouro e tudo o que ele
representava já havia sido passado ao seu filho, então com dez anos.
A família se mudou imediatamente para o Rio
Grande do Sul. Lembrando sempre da história do pai, o garoto crescera com
grande sentimento ufanista e foi com muito orgulho que também se tornou
militar. E foi todo esse sentimento de amor ao país que o levou as urnas a
favor de Getúlio Vargas em 1930.
Com a vitória de Júlio Prestes, nenhum dos
apoiadores de Vargas esperava menos do que uma Revolução.
- Meu pai... – contava o jovem nas conversas
sobre o assunto. – Meu pai me ensinou que nunca se deve desistir de um ideal de
justiça.
- Seu pai está morto há anos... – retrucavam.
- Mas ele viveu bastante pra deixar comigo o
espírito de luta e de amor pelo Brasil! – com a mão no bolso, o jovem militar
acariciava o relógio de ouro, objeto que sempre carregava. – E eu não vou
deixar esses paulistas corruptos acabarem com nosso país!
E foi tudo isso que levou o jovem a se
voluntariar para as tropas gaúchas revolucionárias. Com pouca experiência, o
jovem nunca tinha participado de uma batalha antes do Combate de Quatiguá, na
divisa entre o Paraná e São Paulo, no dia 12 de outubro. Chegando à cidade por
volta das seis e meia da manha, os soldados gaúchos pararam na estação
ferroviária, onde alguns membros da Brigada Militar estavam acampados, depois
de uma troca de tiros com as Tropas Paulistas.
- Qual a situação? – perguntou o líder do
batalhão do jovem do relógio a um tenente da Brigada Militar, que segurava um
pano ensangüentado em cima do rosto.
- Parece que os Legalistas estão em maior
número. Entramos em combate com uma patrulha não muito grande, mas temos informação
de que há vários caminhões de soldados chegando à cidade.
O líder do batalhão se dirigiu a um sargento
próximo e deu a ordem:
- Organize uma patrulha montada e vão
averiguar quantos eles são, dependendo da situação entraremos em contato com o
Coronel para pedir reforços.
- Sim senhor! – respondeu o sargento.
- Os outros fiquem preparados para qualquer
coisa! – terminou o líder do batalhão, se afastando dali enquanto colocava
munição em seu revólver.
O jovem do relógio sentou-se escorado em uma
parede, com seu rifle escorado no ombro. A ansiedade pela proximidade do
combate estava aumentando. Tentando se acalmar, ele passou a acariciar o
relógio no bolso, de olhos fechados, imaginando seu pai ali, ao seu lado,
pronto para a luta.
Algum tempo depois, naquele mesmo dia, o
jovem olhava para o movimento preciso do relógio. Faltavam alguns minutos para
as quatro da tarde. Ele ainda lembrava-se do pai, das histórias que ele contava
e do orgulho que possuía de ter participado da Proclamação da República.
BANG
Um tiro despertou-o do transe. Logo outro
fora dado. Aquele era o anúncio do Combate.
- Legalistas! – gritou um soldado, correndo
para trás de uma coluna segurando o rifle. Os soldados da patrulha montada
adentraram a estação. Os tiros prosseguiam. O combate havia começado.
- São muito numerosos! Estão cercando a
estação. Vamos precisar de reforços! – disse o sargento, desmontando do cavalo,
ao líder do batalhão.
- Você! – respondeu o líder, apontando outro
sargento. – Contate imediatamente o Comandante e peça reforço! – e se dirigiu
para uma janela de revólver em punho, começando a atirar assim que sua vista
permitiu.
O jovem do relógio foi com os outros soldados
para trás das colunas, segurando o rifle, porém, tinha medo de começar a atirar
junto com os outros, na maioria, mais experientes. Ele se sentou com as costas
na coluna e começou a respirar profundamente.
O tenente da Brigada Militar que vira antes,
agora com um enorme pedaço de atadura no rosto passou correndo e sentou por
perto, atrás de outra coluna.
- É sua primeira vez em combate? – perguntou,
antes de se virar e atirar com o rifle.
- Sim. – disse o jovem do relógio,
engatilhando o rifle.
- Bem, rapaz. Fique tranqüilo. Eu vou cuidar
de você. Pra começar, vou te ensinar as regras... Número um...
O rapaz se virou para o tenente, esperando
ele falar, mas ele gritou:
- ATIRA!
O jovem se assustou e se virou para o outro
lado, atirando do pior jeito possível usando a coluna como cobertura. A batalha
prosseguiu. O líder do batalhão atirava apenas com uma mão, em tiros rápidos e
precisos. Embora em número muito menor, a experiência valeu aos Revolucionários
que conseguiam resistir. Pouco depois das dez da noite, os combates cessaram.
- Devem estar se preparando para mais um
ataque. – disse o tenente da Brigada Militar. – Não baixe sua guarda.
O jovem do relógio passara a maior parte do
combate atirando atrás daquela coluna e correndo pela estação buscando munição.
Estava absurdamente cansado.
O Comandante chegou com os reforços de
madrugada. Metralhadoras foram armadas e o jovem do relógio foi colocado para
operar uma delas. Ao amanhecer do dia 13 ele olhava novamente para o relógio.
“Acho que meu pai teria orgulho de mim” pensava. Os tiros recomeçaram de
maneira esparsa e logo foram se intensificando. O combate recomeçara.
O jovem respirou fundo, guardou o relógio e
começou a atirar com a metralhadora. Agora de maneira mais enérgica, o jovem se
sentia totalmente imerso na batalha. O tenente da Brigada Militar ainda estava
ao leu lado e foi o primeiro a socorrê-lo quando fora baleado no ombro direito.
- Merda! – disse o tenente.
O jovem do relógio apertou o objeto com força
no bolso. A dor era insuportável. Ele caiu atrás da metralhadora. Respirava
mal. O tenente o arrastou para trás de uma coluna e arrancou o lado da farda
onde a bala se alojara.
- Isso vai doer muito! – disse o tenente,
enfiando os dedos na ferida, que parecia se abrir por todo o corpo do rapaz. A
bala saiu junto com muito sangue. O tenente cobriu aquilo com um pano e disse
para o jovem pressionar o ferimento, coisa que fez ainda incrédulo com a dor.
Seu companheiro assumiu seu posto na metralhadora.
O ultimo impulso do rapaz foi olhar para o
relógio antes de desmaiar.
O jovem foi levado para uma farmácia onde os
feridos estavam sendo atendidos e posteriormente para um hospital. Ele sofreu
ainda vários dias com a infecção e a febre, que o fazia delirar e sonhar coisas
horríveis, lembranças da batalha misturadas com a morte de seu pai.
Por fim, no dia 25, o rapaz acordou em um
estado melhor, ainda com o ombro enfaixado, mas sem febre. Ele ia sobreviver.
Alguns minutos depois, o tenente da Brigada Militar entrou no quarto e puxou
uma cadeira.
- O que... O que aconteceu? – perguntou o
jovem do relógio.
- Você levou um tiro. – respondeu o tenente
- Ah...
- Teve sorte de ser no ombro...
- E... E a Revolução?
O tenente abriu um largo sorriso.
- Washington Luís foi deposto ontem. Uma
junta vai entregar o poder ao Getúlio Vargas.
- Então nós...
- Sim, guri. Nós vencemos.
O rapaz olhou para o lado e viu o relógio de
ouro pendurado pela corrente na guarda da cama. Ele sorriu largamente também.
- Nós vencemos... – repetiu o jovem soldado.
Além das lembranças, aquele combate
comprometeu parte dos movimentos do braço direito do jovem, que teve que abandonar
a carreira militar. Embora o período seguinte tenha sido conturbado
politicamente, o sentimento nacionalista e de orgulho do jovem pode ser
passado, junto com o relógio, ao seu filho, que nascera em 1942.
E foi ensinando tudo ao filho que os dois viram
o fim da Era Vargas, a sua volta triunfal, sua trágica morte, os abusos
financeiros do Governo JK e a tensão envolvendo a renúncia do Presidente Jânio
Quadros, em 1961.
O filho não se tornara militar, e, como já
estava há muito tempo longe dessa carreira, o pai também não aprovava a
possibilidade dos militares assumirem o controle do país. Além disso, o
vice-presidente, quem legalmente deveria assumir, era João Goulart, o maior
descendente da política popular de Vargas. Naqueles dias, os dois ás vezes
passavam horas na frente do rádio, mudando rapidamente de estação, atrás de
informações sobre os rumos da presidência do país.
- Esses idiotas não sabem o que falam dizendo
que o Jango é comunista. – dizia o pai.
- É coisa dos americanos. – respondia o
filho. – Estão muito paranóicos com essa coisa de comunismo.
- No meu tempo a gente já tinha resolvido
isso com bala!
- Duvido muito que vá todo mundo ficar
parado...
No dia 27 de agosto, falando através da Rádio
Guaíba, o Governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola convocou a população a
resistir contra a oposição à posse de Jango. O filho levantou-se imediatamente
da poltrona onde ouvia o rádio e avisou o pai:
- Eu vou lá! Agora! – e foi correndo até a
porta do apartamento.
- Espera! – gritou o pai. – Toma cuidado, viu
guri? Pegou o relógio?
O rapaz só levantou a corrente e mostrou que
o relógio estava em seu bolso. O pai se sentiu mais tranqüilo. Ele sabia do
quanto de história tinha naquele objeto e não ia impedir o filho de escrever a
sua parte.
Embora a população tenha pegado em armas para
resistir aos militares cujos objetivos eram matar Brizola, esses aderiram ao
movimento e logo Jango assumiria o poder em um regime parlamentar, que seria
derrubado em 1963. Naquele dia na frente do Palácio do Piratini, o filho
protestou e gritou de revolver na mão pela Legalidade, escrevendo sua parte da
história. Naquele dia também ele conheceu a mãe de seu filho.
O pai morreria em 1962, vítima de um enfarto
pouco depois do nascimento do neto. Apesar da Campanha em 1961, os militares
tomaram o poder em 1964. O filho não abandonara a luta que aprendera com o pai,
sendo levado para interrogatório em 1968. Então com cinco anos, seu filho
passava horas na frente da porta do apartamento, esperando ela abrir e o pai
entrar, pronto para um abraço. Porém isso jamais aconteceu.
A mãe passou o relógio e todas as histórias
que ele carregava ao filho. Com muito esforço, conseguiu desconstruir a boa
imagem que o garoto tinha pelo regime, coisa que aprendia na escola. Porém, a
própria personalidade dele refletia seus antepassados e não foi nenhuma
surpresa vê-lo fazendo cartazes e saindo para apoiar o Movimento Diretas Já em
1983.
A abertura política só se concretizou
totalmente com a nova constituição em 1988. Em 1990, o garoto, com o relógio no
bolso, ainda apoiaria o movimento dos Caras Pintadas, pelo impeachment do
Presidente Fernando Collor. Em 1991, seu filho mais velho nasceria. Em 1993,
uma filha.
Em 2008, com cabelos brancos, usando óculos,
e com o relógio já há muito tempo parado, o pai decidira dá-lo ao primogênito.
Embora algum esforço ou outro fosse feito para que o garoto herdasse os
sentimentos patrióticos e a vontade de lutar pelos ideais, aquele pai sabia que
esse seria o mais decisivo dos momentos para a continuação da tradição de
família. Ele tinha na mente as poucas memórias de seu próprio pai quando
adentrou o quarto do garoto, que lia um gibi e ouvia heavy metal, deitado na
cama.
- Filho. Precisamos conversar. – disse o pai.
- Pode falar, velho. – respondeu o garoto,
sem tirar os olhos do gibi.
O pai sentou na cama do primogênito. Ia
falar, mas percebeu que a música o atrapalharia.
- Posso desligar a música?
- Precisa mesmo?
- Sim.
- Ok, então.
O pai apertou o pause do rádio e recomeçou a
falar:
- Filho, eu não sei se você sabe, mas nós
tivemos a sorte de ser de uma família muito, muito especial.
O garoto não desviara os olhos da página.
- E, durante muito tempo, eu venho pensando
em como... – continuou o pai, se interrompendo ao perceber que o garoto não estava
prestando a menor atenção nele. – Larga essa porcaria e me escuta!
O pai arrancou a revista do filho e a jogou
longe.
- Hei, eu tava lendo, Pai!
- Por isso mesmo eu tirei ela de você. Nós
estamos tendo uma conversa séria. E você precisa prestar atenção!
- Fala então... – disse o garoto, com
expressão de raiva.
- Filho. Nós somos uma família muito
especial. Viemos de uma longa linhagem de patriotas e militantes que sempre
estiveram presentes nas lutas por ideais de justiça nesse país. Nunca deixamos
de responder a um chamado para lutar pelo Brasil e mesmo nas situações mais
difíceis nunca desistimos de ver um país melhor, um país mais humano.
O filho não disse nada.
- E toda essa história, tem um símbolo. – o
pai tirou o relógio do bolso.
O filho olhou para aquele objeto durante
algum tempo, imaginando o quanto valeria tal peça. Porém, ele nem sabia se o
pai o daria mesmo e, mesmo que o fizesse, vender poderia deixar o garoto em uma
situação ruim com o seu “velho”.
- Este pequeno relógio me acompanhou durante
vários protestos pela abertura política nos anos oitenta. Antes disso, ele
pertenceu ao seu avô, que muito lutou também contra o Golpe Militar e depois
contra o Regime deles. Nunca voltou de um interrogatório em 1968.
O pai parou pra lembrar do seu próprio pai,
de quem tinha pouquíssimas lembranças e que demorara muito para perder as
esperanças de encontrar vivo. Após um suspiro, ele continuou:
- Antes disso, pertenceu ao seu bisavô, que
foi militar e lutou ao lado dos Revolucionários da Aliança Liberal em 1930,
quando eles levaram Getúlio Vargas ao poder. Seu bisavô foi baleado em uma
batalha dessa Revolução. Ele sobreviveu por pouco. E claro, o seu tataravô. O
homem que comprou o relógio e participou da Proclamação da República. Sem ele,
nada disso teria sido possível. E é por isso que esse símbolo é tão importante.
O relógio de ouro marca toda a história de luta e glória da nossa família.
O jovem até gostara da história, mas agora já
estava começando a ficar entediado. O pai enrolara a corrente e colocou o
relógio na mão do filho. Parecia ter se preparado muito para aquele momento.
Por fim, o pai disse:
- E agora, filho, que eu devo dá-lo a você. É
a sua vez de escrever essa história. E eu sei que você o fará com orgulho.
Lembre-se de sempre levar para sua luta. Leve com você eu, seu avô, seu bisavô
e seu tataravô. Sei que você não vai me decepcionar. – e sorriu. – Acho que já
te atrapalhei demais.
O pai ligou a musica e saiu do quarto. O
filho, deitado, pensou nas palavras do pai com certa incredulidade. Teriam
mesmo seus ancestrais tendo feito tudo isso? Segurando pela ponta da corrente,
ele ergueu o objeto e o deixou pendurado acima de sua cabeça, perto dos olhos.
Embora bonito, o relógio não estava com o horário certo e havia dezenas de
cortezinhos e arranhões. Por fim, o garoto tirou a sua conclusão:
- Que coisa mais idiota! – disse, jogando o
relógio no chão.
E se levantou, saindo do quarto.
Minutos depois, a irmã entraria ali a procura
de um livro e encontraria o objeto jogado no tapete. Curiosa, ela o olharia nas
mãos e logo o levaria para si, admirando a peça.
- Que coisa mais linda!