quinta-feira, 19 de abril de 2012

Verdadeiros Ladrões

           Decretado como Dia do Índio pelo presidente Getúlio Vargas em 1943, a data de 19 de abril é utilizada até hoje como homenagem ao Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, realizado em 1940 no México. Atualmente, vemos no Brasil uma série de discussões relativas aos direitos dos habitantes mais antigos do território. Muito se falando e pouco se fazendo, vemos muitas terras tomadas novamente dos Indígenas, seja pelas mudanças do Código Florestal, seja pela construção de novas usinas na Amazônia. Em honra aos nossos ancestrais que primeiro habitaram esse chão, trago a público o meu grito de protesto ante as muitas injustiças sofridas por tais povos ao longo de sua longa e sofrida trajetória de convivência com os seus "conquistadores".





Na madrugada, um alarme de segurança soava sonoramente em uma rica casa de um bairro nobre. O ladrão havia arrombado o cadeado do portão da frente e estava quase conseguindo escapar quando foi pego pelos vigias noturnos pagos pelo dono da casa, um deputado de brilhante reputação, sobretudo com suas políticas de combate à criminalidade. Extremamente orgulhoso dos seus antepassados lusitanos.
            O proprietário colocou seu chinelo e vestiu um roupão vermelho claro por cima do pijama e foi até o escritório. Era um homem de forma imponente, postura reta e um olhar que intimidava seus adversários políticos. De estatura média, magro, sem barba, cabelos totalmente grisalhos, pele muito clara e olhos azuis, o homem vivia um dos melhores períodos de sua carreira.
            Os seguranças, altos, fortes e também de pele clara trouxeram o ladrão e o jogaram sentado em uma cadeira na frente da escrivaninha do patrão, que fixava o seu olhar naquele criminoso. O ladrão olhou para os lados, assustado, e depois se virou para o patrão, se acalmando, mas ainda sem saber o que fazer. Os vigias ficaram parados atrás da cadeira onde estava o bandido.
            O ladrão era um velho índio. Sem barba, algumas rugas no rosto e cabelo preto curto e muito liso. Andava de pés descalços, vestia uma calça de abrigo cinza completamente suja e uma espécie de poncho, de cor azul fraco, também totalmente encardida. Apesar da situação ruim e do susto inicial, ele agora apresentava uma expressão de serenidade e calma no rosto.
            - Então você é o marginal que tentou me roubar... – disse o dono da casa, juntando as pontas dos dedos das duas mãos.
            - Não senhor. – respondeu o índio.
          - Como não? Meu alarme não soou quando você arrombou meu portão? Meus vigias não o trouxeram por ter invadido a MINHA propriedade?
            - Eu posso ter invadido sua propriedade, mas eu não roubei nada...
      - Como assim não roubou nada?! – gritou o político, se levantando da cadeira e apontando o indicador direito para a face do outro. – Você já estava tentando fugir levando MEUS pertences naquele saco! ISSO É ROUBAR!
            O ladrão não respondeu. O deputado respirava rápido. Estava começando a ficar vermelho. Sentou-se novamente em sua cadeira. O marginal continuava olhando calmamente para o dono da casa, que recomeçou a falar:
            - Por acaso... – sua voz estava calma e com um tom de ironia. – Você sabe quem estava tentando roubar?
            - Sei sim senhor... Afinal, é uma figura pública importantíssima.
            - Então, se me conhece, deveria saber o quanto eu sou conhecido pelas políticas que pretendo colocar nesse país com relação à punição que marginais como você merecem. Deveria saber que não seria bonzinho com você.
            - O poder é seu, senhor deputado... Faça o que quiser. Sou só um mendigo sem importância. – disse o ladrão.
            O dono da casa se escorou no encosto da cadeira e juntou novamente as pontas dos dedos. Após alguns segundos imaginando os horríveis castigos que aquele bandido merecia, ele perguntou aos vigias:
            - O que ele tentou roubar?
     Um dos seguranças pegou um saco que estava escorado no canto e colocou seu conteúdo em cima da escrivaninha. O político olhou para aquilo, intrigado. O índio tentara levar apenas um punhado de terra do jardim, um pedaço de ferro da escada da piscina e um galho de árvore.
                - O que diabos significa isso? – perguntou.
         - Como eu disse ao senhor: Não estou roubando nada. Só recuperando alguns pertences do meu povo.


           - Seu povo? – o deputado estava cada vez mais curioso com aquela história.
           - Índios. Índios que habitavam essa terra muito antes dos seus antepassados chegarem aqui e tirarem tudo que eles tinham, um fato que você tantas vezes exaltou em benefício deles. Isso é o que eu posso devolver ao meu povo. Um punhado de terra do enorme território que vocês tiraram de nós. Um pequeno pedaço de madeira por toda a natureza que foi destruída pelos seus antigos ascendentes. Um pedaço de ferro por todo o metal que foi arrancado da terra em benefício da economia de um povo que veio do outro lado do horizonte.
           O político se levantou novamente e se escorou na sua escrivaninha, encarando o rosto do ladrão mais de perto agora.
            - É disso que se trata? – sua voz demonstrava, sarcasticamente, o quanto ele não acreditava naquela história. – Um “acerto de contas” indígena? Escute aqui seu criminoso, eu não sei que droga você usou para inventar uma história dessas, mas dessa vez eu vou te deixar ir. Se aparecer aqui de novo, vai levar ferro bem mais quente e bem mais desagradável que isso que está roubando...
            - Sinto muito senhor. Mas eu não posso sair. – disse o índio. – Ainda não acabei.
            - Quer tentar roubar mais alguma coisa?
            - Sim.
            O índio fez um movimento rápido na direção de um dos vigias. Escutaram-se dois tiros e os seguranças caíram mortos no chão. O político empalideceu e deu vários passos para trás, encostado na parede, como se quisesse se unir a ela.
            - Essas são as vidas que vocês tiraram do meu povo... – disse o ladrão, e largou a arma em cima da escrivaninha, enquanto recolhia os itens e colocava-os novamente no saco.
            O deputado demorou alguns segundos para recuperar a fala:
            - Por favor, não machuque a mim ou a minha família. Farei tudo o que você quiser... É só me dizer...
- Apenas pense um pouco, senhor deputado. – respondeu o velho índio, colocando o saco sobre as costas e a mão na maçaneta da porta, com o rosto virado para trás. – Quem de nós é o verdadeiro ladrão?


segunda-feira, 2 de abril de 2012

O Homem

         


             A lembrança mais antiga que tenho dele me remete a uma infância tranquila, provavelmente la pelos meus três anos, quando ele passava o dia cuidando de mim no apartamento o qual me lembro de cada minusculo detalhe. Também lembranças esquisitas na época, como vê-lo correndo pelo corredor do hospital com a minha mãe, que entrava em trabalho de parto no nascimento do meu irmão.
                   Os primeiros fios brancos brotaram em sua cabeça e barba quando eu tinha uns oito anos. Porém, tampouco eu reparava isso. Além disso, salvo as semanas encostado devido a uma cirurgia no pé, ele continuava ativo e até hoje não acho possível afirmar que ele está envelhecendo. Ao contrário, foram tornando-se mais comuns as caminhadas de domingo, as tardes de natação e, após um golpe do estresse, a academia tomou o lugar de um dos empregos.
                  Aliás, essa foi uma luta que ele sempre esteve na frente, de peito aberto, pronto a suar a camisa em qualquer jeito que fosse possível, só para poder construir a vida que sonhou pra mim, minha mãe e meu irmão, chegando ao ponto limite, trabalhando quase 16 horas por dia, até se estabilizar em um deles e abandonar a emissora de TV onde trabalhou durante quase vinte anos em diversos setores e onde, em pelo menos durante a metade desse tempo, foi explorado.
                     Muitas escolhas minhas estão diretamente relacionadas com ele. Os bons anos de infância em que me levava ao trabalho na emissora, meu primeiro contato com esse mundo de informação que tanto me cativa e me atrai, tudo graças a ele, algo que mais do que pequenas diversão, virou reflexo agora, no início da minha construção de uma carreira profissional.
                  Me buscar nas festas, me dar presentes, conseguir dinheiro, porém, mais do que isso, o que mais conta pra mim foram as nossas conversas. Desde o principio em ajuda no colégio, até a minha fatídica decisão de fazer faculdade e posteriormente o curso de jornalismo.
                     Hoje, com o seu cabelo já agradavelmente prateado, um dos melhores momentos do dia se tornou chegar em casa, abrir uma cerveja, e passar agradáveis minutos, às vezes horas, em uma gostosa e produtiva conversa. Às vezes, ele me olha com orgulho ao me ver passar no vestibular, tirar a carteira de motorista ou arrumar um emprego. Porém, nisso, ele está enganado. Afinal, quem deve se orgulhar sou eu, pois sei que nem todos possuem a mesma sorte que eu, e não é a toa que vou atrás dos meus ideias. 
                 Foi porque tive um ótimo professor. Sem ele, nada disso seria possível. Nada disso seria pensado. E é por essas e outras razões que eu só tenho a dizer um enorme Muito Obrigado! Afinal, não seria um reles cabelo branco que o desanimaria em sua luta.


                Feliz Aniversário Pai! Eu te amo...


domingo, 1 de abril de 2012

O Relógio de Ouro

Nem todos sabem, mas além do estúpido "Dia da Mentira" hoje é também o aniversário de um dos eventos que mais teve consequências negativas na curta história deste país: O Golpe Militar de 1964, que cobriu todo o país sobre a sombra da ditadura, levando muitas pessoas aos maiores estágios do sofrimento e à morte. Hoje, 48 anos depois desse triste acontecimento, trago a público a minha singela homenagem, não só aos bravos rebeldes que pereceram combatendo a opressão do Regime Militar, mas também a todos os que lutaram e morreram em prol dos ideais de um Brasil mais justo, com mais igualdade e liberdade em todas as épocas da nossa sangrenta história. Boa leitura.




            O jovem militar estava montado em seu cavalo marrom de raça, vestindo sua melhor farda, com a espada na bainha de prata presa ao cinto, onde também estava o coldre da pistola. Ele nunca tivera tanto orgulho de ser um membro do pelotão de Benjamin Constant como naquela manhã, no dia 15 de novembro de 1889. E foi com um gesto imensamente apreciado que ele tirou o relógio de ouro do bolso.
            O relógio recém-comprado era simplesmente o instrumento mais belo que possuía. De origem francesa, com todo o acabamento decorado, uma corrente de prata e ponteiros firmes com movimento preciso, o Militar sabia que aquele pequeno objeto viraria um símbolo do que se passava ali.
          No Campo de Santana, de onde o pelotão estava próximo, alguns civis assistiam àquela movimentação sem entender muito bem a importância do acontecimento. O Marechal Deodoro da Fonseca se aproximava, também com seus subordinados, e não demorou muito a ser aclamado pelos presentes, após seu grito magnífico:
            - Viva a República!
           E o movimento prosseguiu, despedindo os ministros, instaurando o Governo Provisório e colocando Deodoro da Fonseca como líder dos Estados Unidos do Brasil. E foi com imenso orgulho na sua participação naquele evento que o jovem militar do relógio imaginou quantas e quantas vezes contaria aquele acontecimento aos seus filhos, e, se Deus permitisse, aos seus netos.
            Mas Deus não permitiu.
            Alguns anos mais tarde, em 1914, aquele jovem militar seria morto em uma briga de bar, quando sacou a pistola contra um homem que criticava a república e foi esfaqueado pelas costas por um dos amigos de seu adversário. Porém, o relógio de ouro e tudo o que ele representava já havia sido passado ao seu filho, então com dez anos.
A família se mudou imediatamente para o Rio Grande do Sul. Lembrando sempre da história do pai, o garoto crescera com grande sentimento ufanista e foi com muito orgulho que também se tornou militar. E foi todo esse sentimento de amor ao país que o levou as urnas a favor de Getúlio Vargas em 1930.
Com a vitória de Júlio Prestes, nenhum dos apoiadores de Vargas esperava menos do que uma Revolução.
- Meu pai... – contava o jovem nas conversas sobre o assunto. – Meu pai me ensinou que nunca se deve desistir de um ideal de justiça.
- Seu pai está morto há anos... – retrucavam.
- Mas ele viveu bastante pra deixar comigo o espírito de luta e de amor pelo Brasil! – com a mão no bolso, o jovem militar acariciava o relógio de ouro, objeto que sempre carregava. – E eu não vou deixar esses paulistas corruptos acabarem com nosso país!
E foi tudo isso que levou o jovem a se voluntariar para as tropas gaúchas revolucionárias. Com pouca experiência, o jovem nunca tinha participado de uma batalha antes do Combate de Quatiguá, na divisa entre o Paraná e São Paulo, no dia 12 de outubro. Chegando à cidade por volta das seis e meia da manha, os soldados gaúchos pararam na estação ferroviária, onde alguns membros da Brigada Militar estavam acampados, depois de uma troca de tiros com as Tropas Paulistas.
- Qual a situação? – perguntou o líder do batalhão do jovem do relógio a um tenente da Brigada Militar, que segurava um pano ensangüentado em cima do rosto.
- Parece que os Legalistas estão em maior número. Entramos em combate com uma patrulha não muito grande, mas temos informação de que há vários caminhões de soldados chegando à cidade.
O líder do batalhão se dirigiu a um sargento próximo e deu a ordem:
- Organize uma patrulha montada e vão averiguar quantos eles são, dependendo da situação entraremos em contato com o Coronel para pedir reforços.
- Sim senhor! – respondeu o sargento.
- Os outros fiquem preparados para qualquer coisa! – terminou o líder do batalhão, se afastando dali enquanto colocava munição em seu revólver.
O jovem do relógio sentou-se escorado em uma parede, com seu rifle escorado no ombro. A ansiedade pela proximidade do combate estava aumentando. Tentando se acalmar, ele passou a acariciar o relógio no bolso, de olhos fechados, imaginando seu pai ali, ao seu lado, pronto para a luta.
Algum tempo depois, naquele mesmo dia, o jovem olhava para o movimento preciso do relógio. Faltavam alguns minutos para as quatro da tarde. Ele ainda lembrava-se do pai, das histórias que ele contava e do orgulho que possuía de ter participado da Proclamação da República.
BANG
Um tiro despertou-o do transe. Logo outro fora dado. Aquele era o anúncio do Combate.
- Legalistas! – gritou um soldado, correndo para trás de uma coluna segurando o rifle. Os soldados da patrulha montada adentraram a estação. Os tiros prosseguiam. O combate havia começado.
- São muito numerosos! Estão cercando a estação. Vamos precisar de reforços! – disse o sargento, desmontando do cavalo, ao líder do batalhão.
- Você! – respondeu o líder, apontando outro sargento. – Contate imediatamente o Comandante e peça reforço! – e se dirigiu para uma janela de revólver em punho, começando a atirar assim que sua vista permitiu.
O jovem do relógio foi com os outros soldados para trás das colunas, segurando o rifle, porém, tinha medo de começar a atirar junto com os outros, na maioria, mais experientes. Ele se sentou com as costas na coluna e começou a respirar profundamente.
O tenente da Brigada Militar que vira antes, agora com um enorme pedaço de atadura no rosto passou correndo e sentou por perto, atrás de outra coluna.
- É sua primeira vez em combate? – perguntou, antes de se virar e atirar com o rifle.
- Sim. – disse o jovem do relógio, engatilhando o rifle.
- Bem, rapaz. Fique tranqüilo. Eu vou cuidar de você. Pra começar, vou te ensinar as regras... Número um...
O rapaz se virou para o tenente, esperando ele falar, mas ele gritou:
- ATIRA!
O jovem se assustou e se virou para o outro lado, atirando do pior jeito possível usando a coluna como cobertura. A batalha prosseguiu. O líder do batalhão atirava apenas com uma mão, em tiros rápidos e precisos. Embora em número muito menor, a experiência valeu aos Revolucionários que conseguiam resistir. Pouco depois das dez da noite, os combates cessaram.
- Devem estar se preparando para mais um ataque. – disse o tenente da Brigada Militar. – Não baixe sua guarda.
O jovem do relógio passara a maior parte do combate atirando atrás daquela coluna e correndo pela estação buscando munição. Estava absurdamente cansado.
O Comandante chegou com os reforços de madrugada. Metralhadoras foram armadas e o jovem do relógio foi colocado para operar uma delas. Ao amanhecer do dia 13 ele olhava novamente para o relógio. “Acho que meu pai teria orgulho de mim” pensava. Os tiros recomeçaram de maneira esparsa e logo foram se intensificando. O combate recomeçara.
O jovem respirou fundo, guardou o relógio e começou a atirar com a metralhadora. Agora de maneira mais enérgica, o jovem se sentia totalmente imerso na batalha. O tenente da Brigada Militar ainda estava ao leu lado e foi o primeiro a socorrê-lo quando fora baleado no ombro direito.
- Merda! – disse o tenente.
O jovem do relógio apertou o objeto com força no bolso. A dor era insuportável. Ele caiu atrás da metralhadora. Respirava mal. O tenente o arrastou para trás de uma coluna e arrancou o lado da farda onde a bala se alojara.
- Isso vai doer muito! – disse o tenente, enfiando os dedos na ferida, que parecia se abrir por todo o corpo do rapaz. A bala saiu junto com muito sangue. O tenente cobriu aquilo com um pano e disse para o jovem pressionar o ferimento, coisa que fez ainda incrédulo com a dor. Seu companheiro assumiu seu posto na metralhadora.
O ultimo impulso do rapaz foi olhar para o relógio antes de desmaiar.
O jovem foi levado para uma farmácia onde os feridos estavam sendo atendidos e posteriormente para um hospital. Ele sofreu ainda vários dias com a infecção e a febre, que o fazia delirar e sonhar coisas horríveis, lembranças da batalha misturadas com a morte de seu pai.
Por fim, no dia 25, o rapaz acordou em um estado melhor, ainda com o ombro enfaixado, mas sem febre. Ele ia sobreviver. Alguns minutos depois, o tenente da Brigada Militar entrou no quarto e puxou uma cadeira.
- O que... O que aconteceu? – perguntou o jovem do relógio.
- Você levou um tiro. – respondeu o tenente
- Ah...
- Teve sorte de ser no ombro...
- E... E a Revolução?
O tenente abriu um largo sorriso.
- Washington Luís foi deposto ontem. Uma junta vai entregar o poder ao Getúlio Vargas.
- Então nós...
- Sim, guri. Nós vencemos.
O rapaz olhou para o lado e viu o relógio de ouro pendurado pela corrente na guarda da cama. Ele sorriu largamente também.
- Nós vencemos... – repetiu o jovem soldado.
Além das lembranças, aquele combate comprometeu parte dos movimentos do braço direito do jovem, que teve que abandonar a carreira militar. Embora o período seguinte tenha sido conturbado politicamente, o sentimento nacionalista e de orgulho do jovem pode ser passado, junto com o relógio, ao seu filho, que nascera em 1942.
E foi ensinando tudo ao filho que os dois viram o fim da Era Vargas, a sua volta triunfal, sua trágica morte, os abusos financeiros do Governo JK e a tensão envolvendo a renúncia do Presidente Jânio Quadros, em 1961.
O filho não se tornara militar, e, como já estava há muito tempo longe dessa carreira, o pai também não aprovava a possibilidade dos militares assumirem o controle do país. Além disso, o vice-presidente, quem legalmente deveria assumir, era João Goulart, o maior descendente da política popular de Vargas. Naqueles dias, os dois ás vezes passavam horas na frente do rádio, mudando rapidamente de estação, atrás de informações sobre os rumos da presidência do país.
- Esses idiotas não sabem o que falam dizendo que o Jango é comunista. – dizia o pai.
- É coisa dos americanos. – respondia o filho. – Estão muito paranóicos com essa coisa de comunismo.
- No meu tempo a gente já tinha resolvido isso com bala!
- Duvido muito que vá todo mundo ficar parado...
No dia 27 de agosto, falando através da Rádio Guaíba, o Governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola convocou a população a resistir contra a oposição à posse de Jango. O filho levantou-se imediatamente da poltrona onde ouvia o rádio e avisou o pai:
- Eu vou lá! Agora! – e foi correndo até a porta do apartamento.
- Espera! – gritou o pai. – Toma cuidado, viu guri? Pegou o relógio?
O rapaz só levantou a corrente e mostrou que o relógio estava em seu bolso. O pai se sentiu mais tranqüilo. Ele sabia do quanto de história tinha naquele objeto e não ia impedir o filho de escrever a sua parte.
Embora a população tenha pegado em armas para resistir aos militares cujos objetivos eram matar Brizola, esses aderiram ao movimento e logo Jango assumiria o poder em um regime parlamentar, que seria derrubado em 1963. Naquele dia na frente do Palácio do Piratini, o filho protestou e gritou de revolver na mão pela Legalidade, escrevendo sua parte da história. Naquele dia também ele conheceu a mãe de seu filho.
O pai morreria em 1962, vítima de um enfarto pouco depois do nascimento do neto. Apesar da Campanha em 1961, os militares tomaram o poder em 1964. O filho não abandonara a luta que aprendera com o pai, sendo levado para interrogatório em 1968. Então com cinco anos, seu filho passava horas na frente da porta do apartamento, esperando ela abrir e o pai entrar, pronto para um abraço. Porém isso jamais aconteceu.
A mãe passou o relógio e todas as histórias que ele carregava ao filho. Com muito esforço, conseguiu desconstruir a boa imagem que o garoto tinha pelo regime, coisa que aprendia na escola. Porém, a própria personalidade dele refletia seus antepassados e não foi nenhuma surpresa vê-lo fazendo cartazes e saindo para apoiar o Movimento Diretas Já em 1983.
A abertura política só se concretizou totalmente com a nova constituição em 1988. Em 1990, o garoto, com o relógio no bolso, ainda apoiaria o movimento dos Caras Pintadas, pelo impeachment do Presidente Fernando Collor. Em 1991, seu filho mais velho nasceria. Em 1993, uma filha.
 Em 2008, com cabelos brancos, usando óculos, e com o relógio já há muito tempo parado, o pai decidira dá-lo ao primogênito. Embora algum esforço ou outro fosse feito para que o garoto herdasse os sentimentos patrióticos e a vontade de lutar pelos ideais, aquele pai sabia que esse seria o mais decisivo dos momentos para a continuação da tradição de família. Ele tinha na mente as poucas memórias de seu próprio pai quando adentrou o quarto do garoto, que lia um gibi e ouvia heavy metal, deitado na cama.
- Filho. Precisamos conversar. – disse o pai.
- Pode falar, velho. – respondeu o garoto, sem tirar os olhos do gibi.
O pai sentou na cama do primogênito. Ia falar, mas percebeu que a música o atrapalharia.
- Posso desligar a música?
- Precisa mesmo?
- Sim.
- Ok, então.
O pai apertou o pause do rádio e recomeçou a falar:
- Filho, eu não sei se você sabe, mas nós tivemos a sorte de ser de uma família muito, muito especial.
O garoto não desviara os olhos da página.
- E, durante muito tempo, eu venho pensando em como... – continuou o pai, se interrompendo ao perceber que o garoto não estava prestando a menor atenção nele. – Larga essa porcaria e me escuta!
O pai arrancou a revista do filho e a jogou longe.
- Hei, eu tava lendo, Pai!
- Por isso mesmo eu tirei ela de você. Nós estamos tendo uma conversa séria. E você precisa prestar atenção!
- Fala então... – disse o garoto, com expressão de raiva.
- Filho. Nós somos uma família muito especial. Viemos de uma longa linhagem de patriotas e militantes que sempre estiveram presentes nas lutas por ideais de justiça nesse país. Nunca deixamos de responder a um chamado para lutar pelo Brasil e mesmo nas situações mais difíceis nunca desistimos de ver um país melhor, um país mais humano.
O filho não disse nada.
- E toda essa história, tem um símbolo. – o pai tirou o relógio do bolso.
O filho olhou para aquele objeto durante algum tempo, imaginando o quanto valeria tal peça. Porém, ele nem sabia se o pai o daria mesmo e, mesmo que o fizesse, vender poderia deixar o garoto em uma situação ruim com o seu “velho”.
- Este pequeno relógio me acompanhou durante vários protestos pela abertura política nos anos oitenta. Antes disso, ele pertenceu ao seu avô, que muito lutou também contra o Golpe Militar e depois contra o Regime deles. Nunca voltou de um interrogatório em 1968.
O pai parou pra lembrar do seu próprio pai, de quem tinha pouquíssimas lembranças e que demorara muito para perder as esperanças de encontrar vivo. Após um suspiro, ele continuou:
- Antes disso, pertenceu ao seu bisavô, que foi militar e lutou ao lado dos Revolucionários da Aliança Liberal em 1930, quando eles levaram Getúlio Vargas ao poder. Seu bisavô foi baleado em uma batalha dessa Revolução. Ele sobreviveu por pouco. E claro, o seu tataravô. O homem que comprou o relógio e participou da Proclamação da República. Sem ele, nada disso teria sido possível. E é por isso que esse símbolo é tão importante. O relógio de ouro marca toda a história de luta e glória da nossa família.
O jovem até gostara da história, mas agora já estava começando a ficar entediado. O pai enrolara a corrente e colocou o relógio na mão do filho. Parecia ter se preparado muito para aquele momento. Por fim, o pai disse:
- E agora, filho, que eu devo dá-lo a você. É a sua vez de escrever essa história. E eu sei que você o fará com orgulho. Lembre-se de sempre levar para sua luta. Leve com você eu, seu avô, seu bisavô e seu tataravô. Sei que você não vai me decepcionar. – e sorriu. – Acho que já te atrapalhei demais.
O pai ligou a musica e saiu do quarto. O filho, deitado, pensou nas palavras do pai com certa incredulidade. Teriam mesmo seus ancestrais tendo feito tudo isso? Segurando pela ponta da corrente, ele ergueu o objeto e o deixou pendurado acima de sua cabeça, perto dos olhos. Embora bonito, o relógio não estava com o horário certo e havia dezenas de cortezinhos e arranhões. Por fim, o garoto tirou a sua conclusão:
- Que coisa mais idiota! – disse, jogando o relógio no chão.
E se levantou, saindo do quarto.
Minutos depois, a irmã entraria ali a procura de um livro e encontraria o objeto jogado no tapete. Curiosa, ela o olharia nas mãos e logo o levaria para si, admirando a peça.
- Que coisa mais linda!