As ondas batiam na praia calmamente.
O sol terminava de pintar as ultimas nuvens de rosa e as primeiras estrelas
anunciavam a presença da noite. Ele estava sentado na areia olhando para o horizonte,
sozinho. A garota não estava mais visível e seus amigos já haviam voltado para
a pensão onde moravam, nos arredores de dezenas de outras casas próximas do
asfalto, a cerca de dois quilômetros da praia, na beira da Rodovia.
A Rodovia.
Cheia de buracos, com dezenas de
carros saindo da cidade, mas pouquíssimos indo na direção dela. O viaduto que a
cortava estava interditado, com vários buracos, meio quebrado. O mesmo se dizia
do shopping da cidade. Era tudo por causa das bombas.
A lembrança da última queda de
bombas ainda estava bem viva na mente. Certamente a lembrança mais horrível da
sua vida, junto com ver o irmão mais velho ser arrastado pelos soldados para
fora de casa quando alcançara a idade para servir. O alistamento era
obrigatório, mas nem todos o faziam. Dentre esses, alguns eram escolhidos
aleatoriamente e levados a força.
A
última queda de bombas já havia ocorrido há três anos e embora a cidade e os
locais ao redor dela, como a praia, a rodovia e a casa onde morava estivessem
sempre sobre ameaça de ataque, as pessoas se acostumaram a viver sobre aquela
tensão. Não tinham pra onde ir.
Os seus
pensamentos pareciam se desenhar na sua frente, na forma das nuvens, na espuma
do mar e nas constelações do céu. Já era para ele. Completara dezoito anos a
três dias. Logo seria recrutado. Lutaria e morreria no campo de batalha assim
como seu pai e seu irmão mais velho.
-
Talvez valha à pena morrer por isso. – tinha dito o amigo que usava óculos,
colega de quarto, enquanto ambos colocavam as pranchas de surfe no jipe,
algumas horas antes.
- Vale a pena por quê? A gente nem
sabe mais como essa merda de conflito começou. – respondeu o garoto.
- Mas você não acha suficiente
defender a sua Nação?
- Meu pai morreu no campo de batalha
quando eu tinha dez anos e eu nunca mais tive notícia do meu irmão depois do
recrutamento dele. Você realmente acha que eu dou algum valor pra Nação?
O
amigo mais alto e sem camisa desceu as escadas externas da pensão, acompanhado
da namorada. O garoto sabia que ela tinha um caso com o que usava óculos, mas
preferia não interferir e deixar as coisas explodirem.
- Vamos embora logo que hoje eu to
só pelo mar! – disse o amigo mais alto.
- Torcer pra não terem fechado a
estrada principal... – disse o amigo de óculos, se sentando ao volante.
- Eu ouvi algo sobre ameaça de bomba
ontem... – disse o garoto, subindo no jipe.
A garota começou a descer as
escadas. Estava sorrindo. Era com certeza a melhor amiga do garoto, desde a
infância. Totalmente diferente da namorada do amigo. Ela quem conseguira a vaga
na pensão depois que o irmão dele fora levado para o campo de batalha. Subiu no
jipe, beijando a bochecha do garoto.
- Poe uma musica aí! – disse ela.
Um
pescador passou caminhando pela frente da beira da praia. Ele não tinha um dos
braços. O garoto conteve um riso irônico. Talvez tivesse sorte de ainda estar
inteiro, talvez tivesse mais sorte que o pescador. Porém, o pescador era mais
velho e não estava em risco de recrutamento, o que também o dava grande sorte
por ter chegado àquela idade.
Por
que era tão pessimista? Nem tinha tantos motivos pra isso. Talvez ele seja
liberado de convocação devido ao seu pai e seu irmão terem servido. Talvez ele
até seja convocado, passe pelo treinamento, mas a guerra poderia acabar antes
de ele sequer ser mandado para frente de batalha. Ou melhor: talvez nem tenham
sua ficha. Talvez achem que seus pais, ambos já falecidos, tivessem tido apenas
um filho...
Músicas
pesadas tinham acompanhado os amigos durante todo o caminho. O amigo de óculos
dirigia tranqüilo, com uma mão para fora do carro, segurando uma garrafinha de
cerveja. O amigo mais alto, sentado no banco do carona, fumava um cigarro, mais
preocupado com a forma da sua fumaça do que com os resultados da guerra. Ambos
já tinham sido liberados da convocação.
A namorada do amigo mais alto estava
silenciosa, olhando ora para o amigo de óculos, ora para o mais alto, como se
estivesse em casa, olhando o armário, escolhendo qual roupa ia usar. A outra
garota agora tinha colocado um sorriso mais leve no rosto, sem mostrar os
dentes, e frequentemente colocava o cabelo pra trás da orelha.
- No que está pensando? – perguntou
o garoto a ela.
-
Eu deveria estar pensando em alguma coisa? – respondeu ela.
- Eu te conheço, você é tão
pensativa quanto eu...
Ela riu.
- É. Ta bom. Eu to pensando que...
Esse está sendo um ano muito intenso. Já estamos quase no fim dele e as coisas
continuam tão rápidas, tão superficiais...
- Pelo menos não caíram mais bombas.
- E você? O que ta pensando?
- Tava tentando adivinhar o que você
estava pensando...
- Por que o que eu penso é tão
importante pra ti?
- Porque você é importante pra
mim...
Ela
sorriu mais, olhando para ele, com a mão no cabelo. Depois se virou para o
outro lado. Os dois amigos da frente estavam rindo, o mais alto com o cigarro
entre os dedos. O de óculos terminou a cerveja e jogou a garrafa na estrada.
Embora conscientes da situação atual, os dois viviam rindo, bebendo e curtindo,
como meio pra espantar o medo da morte. As bombas podiam cair a qualquer
momento. O garoto meio que pegava carona nessas loucuras, mas isso não era
suficiente para livrá-lo do medo.
A
estrada estava fechada. Um homem gordo de pele branca e um pouco de barba
vestindo uma camisa vermelha fez sinal para pararem.
- O que aconteceu? – perguntou o
amigo de óculos.
- Parece que são terroristas
infiltrados... Instalaram minas terrestres daqui até o viaduto. Estamos cuidando
para desarmá-las.
- Minas terrestres no asfalto? –
perguntou o amigo de óculos.
- Eles enterram nos buracos da
rodovia... E você sabe que são muitos, então temos bastante trabalho...
- Ok, boa sorte...
Eles tiveram que fazer um retorno e
seguir até o caminho alternativo, passando por algumas ruas de terra. Logo
depois de fazer a volta, ouviram uma explosão.
- Ai... Mais sorte da próxima vez. –
disse o amigo alto, abrindo uma cerveja.
Não havia mais nuvens cor de rosa
agora, apenas estrelas, dando uma leve claridade a uma noite sem lua. Ele podia
estar vendo o mar pela última vez. Os campos de batalha ficavam no interior do
país e mesmo as unidades de treinamento ficavam longe do litoral.
Como
deveria ser a vida de um soldado? Talvez triste. Talvez não tanto. Talvez
alguns até achassem divertido a idéia de tirar vidas humanas. Ele não.
Nunca segurara uma arma na vida.
Nunca tinha visto alguém morrer. Nunca soube se conseguiria matar alguém. Apenas
sabia que a guerra era um jogo perigoso e que em muitas ocasiões alguns
centésimos de segundo mais rápido ao puxar o gatilho podem garantir se sua vida
continua ou não. Porém, talvez fosse menos doloroso morrer primeiro do que ver
os outros caírem.
Podia ver claramente agora em sua
mente. O fogo queimando em volta das trincheiras, os tiros cortando o ar, o
sangue cobrindo a terra e fumaça, muita fumaça. Será que o amigo mais alto
pararia para ver a forma da fumaça numa batalha? Será que o amigo de óculos
pararia para beber cerveja? Não.
Ele sabia que os amigos e aliados só
parariam por um motivo: A morte.
Naquele dia, depois de chegarem à
praia, eles tiraram as pranchas do jipe e aproveitaram o mar como sempre
faziam, cortando as ondas. Porém, o assunto da provável convocação do garoto
voltou à tona logo que saíram da água, ainda com as pranchas debaixo dos
braços.
- Eu não consigo parar de pensar
nisso... – disse o garoto.
- Olha... Você sabe que eles
selecionam totalmente à sorte. – disse o amigo mais alto. – Se nenhum de nós
foi, quais as chances de você ir?
- Meu pai serviu, meu irmão
serviu... Parece coisa de família. Talvez eu devesse me alistar, para honrar o nome
deles...
- Você não vai honrar coisa nenhuma
debaixo da terra... – disse o amigo mais alto, largando a prancha na areia e
dando um rápido beijo na namorada.
- Acho que está fazendo tempestade
em copo d’água. Não deve ser lá tão difícil sobreviver a uma batalha e eu sei
que você não quer ser um herói de guerra. Por enquanto, apenas relaxa. Podemos
explodir a qualquer momento e nem por isso pensamos o tempo todo que vamos
morrer. Se você for convocado, pelo menos aproveitou o tempo que te resta...
O garoto considerou um pouco falha
essa tentativa de tentar animá-lo. Eles jogaram vôlei, beberam cerveja,
conversaram, surfaram mais um pouco e começaram a se preparar para ir embora.
Foi nessa hora que o garoto sentou-se na praia, encarando o horizonte, meio
isolado dos outros.
- No que está pensando? – perguntou
a garota, sentando-se ao seu lado, na areia.
Ele sorriu e respondeu calmamente:
- Estou pensando se vou ter que
participar dessa guerra... Estou com medo de ser convocado... Estou com medo de
ir pro campo de batalha e morrer com uma bala no estômago...
- E o que vai fazer se não for
convocado?
Ele ficou sem resposta. O vento
mexia o longo cabelo da garota.
- Acho que vou continuar vivendo...
Como sempre vivi... – disse, depois de um tempo.
- Mas ainda assim vai ter medo de
morrer não vai?
- As bombas estão caindo, o que
posso fazer?
- Pode esquecer tudo e ir embora.
Independente da convocação...
- Abandonar o país?
- Sim. Você ainda tem o dinheiro da
venda da casa e objetos da sua família não é?
- Não tenho a menor idéia de pra
onde eu iria...
- É o que torna a viagem
interessante.
Os dois se encararam alguns
segundos.
- Tem um problema muito sério com
esse seu plano. – disse o garoto.
- O que?
- Eu ficaria muito longe de ti...
Ela abriu um sorriso enorme antes de
responder:
- Bem, acho que eu não me importaria
de ir embora com você...
- Ia conseguir ficar longe daqui?
- Conseguiria. – ela se levantou. –
Mas é bom decidir logo o que vai fazer pra não ser convocado.
- Por que é tão importante pra você
que eu não vá pra guerra?
Ela começou a se afastar, enquanto
respondia:
- Porque você é importante pra
mim...
A noite estava alta agora. Devia ser
quase meia noite. Os pensamentos o tinham levado por uma trilha nova, pelo meio
das estrelas. Os amigos já tinham ido. Ele e a garota teriam que voltar a pé.
Mas isso não o preocupava, já tinha feito antes. Agora de pé, sua mente já
alcançara um futuro. Sim, ele ia sobreviver. Olhou para o lado e chamou a
garota pelo nome.
Na manhã seguinte, o garoto, a
garota e o jipe tinham desaparecido.