terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A Rodovia da Beira do Mar



            As ondas batiam na praia calmamente. O sol terminava de pintar as ultimas nuvens de rosa e as primeiras estrelas anunciavam a presença da noite. Ele estava sentado na areia olhando para o horizonte, sozinho. A garota não estava mais visível e seus amigos já haviam voltado para a pensão onde moravam, nos arredores de dezenas de outras casas próximas do asfalto, a cerca de dois quilômetros da praia, na beira da Rodovia.
            A Rodovia.
         Cheia de buracos, com dezenas de carros saindo da cidade, mas pouquíssimos indo na direção dela. O viaduto que a cortava estava interditado, com vários buracos, meio quebrado. O mesmo se dizia do shopping da cidade. Era tudo por causa das bombas.
            A lembrança da última queda de bombas ainda estava bem viva na mente. Certamente a lembrança mais horrível da sua vida, junto com ver o irmão mais velho ser arrastado pelos soldados para fora de casa quando alcançara a idade para servir. O alistamento era obrigatório, mas nem todos o faziam. Dentre esses, alguns eram escolhidos aleatoriamente e levados a força.
   A última queda de bombas já havia ocorrido há três anos e embora a cidade e os locais ao redor dela, como a praia, a rodovia e a casa onde morava estivessem sempre sobre ameaça de ataque, as pessoas se acostumaram a viver sobre aquela tensão. Não tinham pra onde ir.
   Os seus pensamentos pareciam se desenhar na sua frente, na forma das nuvens, na espuma do mar e nas constelações do céu. Já era para ele. Completara dezoito anos a três dias. Logo seria recrutado. Lutaria e morreria no campo de batalha assim como seu pai e seu irmão mais velho.
            - Talvez valha à pena morrer por isso. – tinha dito o amigo que usava óculos, colega de quarto, enquanto ambos colocavam as pranchas de surfe no jipe, algumas horas antes.
            - Vale a pena por quê? A gente nem sabe mais como essa merda de conflito começou. – respondeu o garoto.
            - Mas você não acha suficiente defender a sua Nação?
            - Meu pai morreu no campo de batalha quando eu tinha dez anos e eu nunca mais tive notícia do meu irmão depois do recrutamento dele. Você realmente acha que eu dou algum valor pra Nação?
         O amigo mais alto e sem camisa desceu as escadas externas da pensão, acompanhado da namorada. O garoto sabia que ela tinha um caso com o que usava óculos, mas preferia não interferir e deixar as coisas explodirem.
            - Vamos embora logo que hoje eu to só pelo mar! – disse o amigo mais alto.
          - Torcer pra não terem fechado a estrada principal... – disse o amigo de óculos, se sentando ao volante.
            - Eu ouvi algo sobre ameaça de bomba ontem... – disse o garoto, subindo no jipe.
            A garota começou a descer as escadas. Estava sorrindo. Era com certeza a melhor amiga do garoto, desde a infância. Totalmente diferente da namorada do amigo. Ela quem conseguira a vaga na pensão depois que o irmão dele fora levado para o campo de batalha. Subiu no jipe, beijando a bochecha do garoto.
            - Poe uma musica aí! – disse ela.
          Um pescador passou caminhando pela frente da beira da praia. Ele não tinha um dos braços. O garoto conteve um riso irônico. Talvez tivesse sorte de ainda estar inteiro, talvez tivesse mais sorte que o pescador. Porém, o pescador era mais velho e não estava em risco de recrutamento, o que também o dava grande sorte por ter chegado àquela idade.

          Por que era tão pessimista? Nem tinha tantos motivos pra isso. Talvez ele seja liberado de convocação devido ao seu pai e seu irmão terem servido. Talvez ele até seja convocado, passe pelo treinamento, mas a guerra poderia acabar antes de ele sequer ser mandado para frente de batalha. Ou melhor: talvez nem tenham sua ficha. Talvez achem que seus pais, ambos já falecidos, tivessem tido apenas um filho...
               Músicas pesadas tinham acompanhado os amigos durante todo o caminho. O amigo de óculos dirigia tranqüilo, com uma mão para fora do carro, segurando uma garrafinha de cerveja. O amigo mais alto, sentado no banco do carona, fumava um cigarro, mais preocupado com a forma da sua fumaça do que com os resultados da guerra. Ambos já tinham sido liberados da convocação.
             A namorada do amigo mais alto estava silenciosa, olhando ora para o amigo de óculos, ora para o mais alto, como se estivesse em casa, olhando o armário, escolhendo qual roupa ia usar. A outra garota agora tinha colocado um sorriso mais leve no rosto, sem mostrar os dentes, e frequentemente colocava o cabelo pra trás da orelha.
            - No que está pensando? – perguntou o garoto a ela.

            - Eu deveria estar pensando em alguma coisa? – respondeu ela.
            - Eu te conheço, você é tão pensativa quanto eu...
            Ela riu.
            - É. Ta bom. Eu to pensando que... Esse está sendo um ano muito intenso. Já estamos quase no fim dele e as coisas continuam tão rápidas, tão superficiais...
            - Pelo menos não caíram mais bombas.
            - E você? O que ta pensando?
            - Tava tentando adivinhar o que você estava pensando...
            - Por que o que eu penso é tão importante pra ti?
            - Porque você é importante pra mim...
      Ela sorriu mais, olhando para ele, com a mão no cabelo. Depois se virou para o outro lado. Os dois amigos da frente estavam rindo, o mais alto com o cigarro entre os dedos. O de óculos terminou a cerveja e jogou a garrafa na estrada. Embora conscientes da situação atual, os dois viviam rindo, bebendo e curtindo, como meio pra espantar o medo da morte. As bombas podiam cair a qualquer momento. O garoto meio que pegava carona nessas loucuras, mas isso não era suficiente para livrá-lo do medo.
         A estrada estava fechada. Um homem gordo de pele branca e um pouco de barba vestindo uma camisa vermelha fez sinal para pararem.
          - O que aconteceu? – perguntou o amigo de óculos.
      - Parece que são terroristas infiltrados... Instalaram minas terrestres daqui até o viaduto. Estamos cuidando para desarmá-las.
          - Minas terrestres no asfalto? – perguntou o amigo de óculos.
          - Eles enterram nos buracos da rodovia... E você sabe que são muitos, então temos bastante trabalho...
            - Ok, boa sorte...
            Eles tiveram que fazer um retorno e seguir até o caminho alternativo, passando por algumas ruas de terra. Logo depois de fazer a volta, ouviram uma explosão.
            - Ai... Mais sorte da próxima vez. – disse o amigo alto, abrindo uma cerveja.
            Não havia mais nuvens cor de rosa agora, apenas estrelas, dando uma leve claridade a uma noite sem lua. Ele podia estar vendo o mar pela última vez. Os campos de batalha ficavam no interior do país e mesmo as unidades de treinamento ficavam longe do litoral.
           Como deveria ser a vida de um soldado? Talvez triste. Talvez não tanto. Talvez alguns até achassem divertido a idéia de tirar vidas humanas. Ele não.
           Nunca segurara uma arma na vida. Nunca tinha visto alguém morrer. Nunca soube se conseguiria matar alguém. Apenas sabia que a guerra era um jogo perigoso e que em muitas ocasiões alguns centésimos de segundo mais rápido ao puxar o gatilho podem garantir se sua vida continua ou não. Porém, talvez fosse menos doloroso morrer primeiro do que ver os outros caírem.
            Podia ver claramente agora em sua mente. O fogo queimando em volta das trincheiras, os tiros cortando o ar, o sangue cobrindo a terra e fumaça, muita fumaça. Será que o amigo mais alto pararia para ver a forma da fumaça numa batalha? Será que o amigo de óculos pararia para beber cerveja? Não.
            Ele sabia que os amigos e aliados só parariam por um motivo: A morte.
            Naquele dia, depois de chegarem à praia, eles tiraram as pranchas do jipe e aproveitaram o mar como sempre faziam, cortando as ondas. Porém, o assunto da provável convocação do garoto voltou à tona logo que saíram da água, ainda com as pranchas debaixo dos braços.
            - Eu não consigo parar de pensar nisso... – disse o garoto.
           - Olha... Você sabe que eles selecionam totalmente à sorte. – disse o amigo mais alto. – Se nenhum de nós foi, quais as chances de você ir?
        - Meu pai serviu, meu irmão serviu... Parece coisa de família. Talvez eu devesse me alistar, para honrar o nome deles...
        - Você não vai honrar coisa nenhuma debaixo da terra... – disse o amigo mais alto, largando a prancha na areia e dando um rápido beijo na namorada.
      - Acho que está fazendo tempestade em copo d’água. Não deve ser lá tão difícil sobreviver a uma batalha e eu sei que você não quer ser um herói de guerra. Por enquanto, apenas relaxa. Podemos explodir a qualquer momento e nem por isso pensamos o tempo todo que vamos morrer. Se você for convocado, pelo menos aproveitou o tempo que te resta...
            O garoto considerou um pouco falha essa tentativa de tentar animá-lo. Eles jogaram vôlei, beberam cerveja, conversaram, surfaram mais um pouco e começaram a se preparar para ir embora. Foi nessa hora que o garoto sentou-se na praia, encarando o horizonte, meio isolado dos outros.
            - No que está pensando? – perguntou a garota, sentando-se ao seu lado, na areia.
            Ele sorriu e respondeu calmamente:
        - Estou pensando se vou ter que participar dessa guerra... Estou com medo de ser convocado... Estou com medo de ir pro campo de batalha e morrer com uma bala no estômago...
            - E o que vai fazer se não for convocado?
            Ele ficou sem resposta. O vento mexia o longo cabelo da garota.
            - Acho que vou continuar vivendo... Como sempre vivi... – disse, depois de um tempo.
            - Mas ainda assim vai ter medo de morrer não vai?
            - As bombas estão caindo, o que posso fazer?
            - Pode esquecer tudo e ir embora. Independente da convocação...
            - Abandonar o país?
            - Sim. Você ainda tem o dinheiro da venda da casa e objetos da sua família não é?
            - Não tenho a menor idéia de pra onde eu iria...
            - É o que torna a viagem interessante.
            Os dois se encararam alguns segundos.
            - Tem um problema muito sério com esse seu plano. – disse o garoto.
            - O que?
            - Eu ficaria muito longe de ti...
            Ela abriu um sorriso enorme antes de responder:
            - Bem, acho que eu não me importaria de ir embora com você...
            - Ia conseguir ficar longe daqui?
            - Conseguiria. – ela se levantou. – Mas é bom decidir logo o que vai fazer pra não ser convocado.
            - Por que é tão importante pra você que eu não vá pra guerra?
            Ela começou a se afastar, enquanto respondia:
            - Porque você é importante pra mim...
           A noite estava alta agora. Devia ser quase meia noite. Os pensamentos o tinham levado por uma trilha nova, pelo meio das estrelas. Os amigos já tinham ido. Ele e a garota teriam que voltar a pé. Mas isso não o preocupava, já tinha feito antes. Agora de pé, sua mente já alcançara um futuro. Sim, ele ia sobreviver. Olhou para o lado e chamou a garota pelo nome.

           







Na manhã seguinte, o garoto, a garota e o jipe tinham desaparecido.